O café em Nazaré Uniluz: Uma Carta Aberta

Pessoas queridas,

No início de 1982, quando a história de Nazaré Uniluz começou, bebia-se café. O grupo estava constituído de 12 brasileiros, em sua maioria vindos de Belo Horizonte (Marcos, Marisa, Yeda, Ângela, Áurea, Mônica, Bete, Wallace e Walter), dois vindos de Salvador (Sonia e Marcelo) e o nosso mentor espiritual – José Trigueirinho Neto – de São Paulo. À época, a grande maioria bebia café. 

Sabemos que o café contém uma substância muito conhecida e apreciada, lícita e controvertida – a cafeína – consumida pela humanidade há muito tempo. Trigueirinho, como um bom bebedor e apreciador do café paulista, tinha planos de tratar o café como uma das importantes aprendizagens no processo de instalação de uma Escola de Meditação Ocultista: Esta foi a primeira referência semântica do que estávamos fazendo em grupo, segundo o que estava escrito nos tratados da Alice Bailey e do Mestre Tibetano, Djwal Khul.

A ideia de purificar os corpos físico, emocional e mental era central aos ensinamentos que Trigueirinho estava trazendo para serem praticados e vividos em grupo, concomitantemente com a construção física dos prédios e as “instalações espirituais” da escola. Inicialmente, seis meses de retiro com ênfase no silêncio, na meditação e estudos voltados para o desenvolvimento de uma consciência grupal dariam a partida de um experimento que perdura há mais de 42 anos. 

Talvez o Trigueirinho quisesse que investigássemos sobre o silêncio em grupo para curar a necessidade de animar o próprio ego. Talvez a reclusão e o celibato autoimposto serviriam para desenvolver o foco interno e mantê-lo, de modo a não transformar a experiência numa vida de comunidade ordinária ou numa república de estudantes. Talvez, tirar a cafeína do sistema dos que a consumiam seria um ponto de apoio para alavancar as transformações almejadas. Crenças apontando numa única direção, dentre elas a de que limpar a cafeína do seu sistema é essencial para purificar os corpos físico, emocional e mental, eram difundidas e aplicadas como se fossem parte de um currículo a ser cumprido.  

Intensas e incontáveis mudanças foram acontecendo rápida e dinamicamente e o grupo concordou em viver o processo de ir diminuindo o consumo do café. Primeiramente, tomava-se café, chá de ervas naturais ou banchá (que também contém cafeína); houve um período de transição em que se passou a consumir café de cevada, como uma bebida substituta e parecida, porém sem cafeína, e até chegou-se a experimentar uma bebida feita com milho torrado, sem sucesso ou boa aceitação, pois aspirava-se pela retirada gradual, porém definitiva, do café como bebida a ser consumida. 

Portanto, olhava-se para o café de um jeito que é possivelmente impraticável e desnecessário na Uniluz contemporânea, porém a “desinstalação” do café como bebida foi feita gradualmente e com respeito aos que estavam abdicando de um hábito. Subjetivamente, cada um soube do significado ou do desafio daquilo para si, naquele momento e contexto. Se a cafeína é uma substância lícita que causa dependência, assim como o álcool e o açúcar, parecia muito coerente que um grupo como aquele e com aquela proposta espiritual e existencial levasse o fato em consideração, apoiando-se nos ensinamentos e crenças aceitas e compartilhadas. O uso de açúcar também era desestimulado, admitindo-se parcimoniosamente o mascavo, e o álcool não era permitido e continua não sendo. 

Portanto, no contexto histórico do desenvolvimento institucional, tomar ou não tomar café saiu do campo da dúvida, fortaleceu-se e, por meio de um processo dinâmico e cuidadoso, o hábito foi sendo eliminado. Indagando sobre a ausência do café a uma pessoa, que foi assídua frequentadora e apoiadora naquele momento histórico, a sua resposta foi a de que ao ter que encarar isso, ela se via diante de um ato de reverência ao sagrado e que, apesar de sentir dores de cabeça desconfortáveis, o contexto a induzia a ir além do hábito e a descobrir se seria possível conviver com isso temporariamente, mesmo sem ter a intenção de parar de beber café. 

Anos se passaram com milhares de pessoas passando por Nazaré Uniluz e quem vinha já sabia previamente que não se bebia café. Quem buscava alguma forma de purificação, de transformação ou superação, etc., via nisso uma possibilidade de autotransformação e passava pela experiência. Cada um enfrentava o desafio da abstinência da cafeína como podia e, se não podia, talvez isso fosse um motivo para não vir. Nunca soubemos estatisticamente dos resultados desse tipo de proposta, ou seja, o de quantas pessoas deixaram de vir porque não se bebia café. O impacto positivo ou negativo disso na consciência das pessoas nunca foi estudado ou avaliado até o presente. 

Contudo, como a ideia original do Trigueirinho como mentor e originador de todo esse processo era a de purificar o corpo e a consciência humanas de ‘toxinas’ físicas, emocionais e mentais, a eliminação do café certamente representava um ponto de partida para a amplitude subjetiva de tudo isso. 

Da década de 80 até o momento presente, muita coisa aconteceu no relacionamento do ser humano com o consumo e o hábito de beber café. Novas gerações chegaram à idade adulta, novas descobertas científicas foram sendo reveladas, não só em relação às substâncias e princípios ativos da bebida, mas também com a indústria produzindo máquinas eficientes, acessíveis e práticas, assim como cápsulas que facilitam, popularizam e difundem as propriedades, os sabores, as nuances e as sutilezas do café. Tudo isso promoveu uma mudança cultural de grande amplitude para o universo do café e talvez possamos dizer que isso também se amplia para a inclusão de outras substâncias ainda consideradas ilícitas, que a indústria farmacêutica tem interesse em comercializar.  

Por conta de todos esses eventos e de mudanças perceptivas envolvendo o ato de beber café no mundo, passamos pelo questionamento do porquê não se bebe café em Nazaré Uniluz. Isso gerou debates e muitas reuniões grupais envolvendo o Conselho Diretor e as gestões financeira e administrativa. Na época, não chegamos a um consenso e agimos segundo o que decidiu a maioria que foi a de reinstalar o consumo do café. 

Foi trabalhoso encontrar as soluções logísticas para a reinstalação do café e, até o momento, ainda não encontramos a solução grupal e ideal para o TODO da questão. O assunto volta recorrentemente para as pautas de nossas reuniões de conselho e administrativas, com reclamações, insatisfações e questionamentos. 

E por que estamos contando a história desde o começo? Por que estamos trazendo isso para o conhecimento de todos que se relacionam com Nazaré Uniluz, nas diferentes modalidades em que isso é possível? 

Um jeito mais direto e simples de responder a isso é: Porque o nosso único “produto” essencial é Consciência. Consciência do Todo, da forma mais abrangente e inclusiva que pudermos, cuidando amorosamente para não banalizar o que pode ter importância e significado na totalidade do que somos. Precisamos tomar consciência desses fatos históricos que tiveram grande significado no processo de instalar e desenvolver o que estamos fazendo hoje e reconhecer e aceitar isso como parte integral da Essência de Nazaré Uniluz. Tão importante quanto reconhecer que, no campo consciencial do grupo envolvido nas decisões, a memória do significado real de tudo isso permanece vivo e cheio de significado na constituição energética do TODO. 

Sabemos que não houve consenso quanto à volta do beber café no campus, mas não nos impedimos a nós mesmos de seguir adiante, com respeito pela minoria leal que manteve o seu ponto de vista, mas honrando a visão da maioria que prevaleceu. Consideramos que, para pessoas consciencialmente maduras e adultas, falta de consenso não é um impedimento para que uma solução adequada e eficiente seja encontrada, porque todos concordam em seguir adiante e desimpedir o caminho para um próximo passo, dentre muitos que certamente surgirão. 

Até o momento em que isso está sendo escrito, já demos muitos passos logísticos, encontramos soluções que não se sustentaram por muito tempo e parece que o café volta ao centro de uma atenção que se faz necessária. Podemos ter opiniões diferentes, mas parece haver uma concordância geral de que a cafeína seja consumida de forma equilibrada em Nazaré Uniluz. Não somos uma cafeteria de bairro nem baristas ou especialistas da bebida. Aparentemente, há dias bons e dias ruins na vida de todo mundo e o mesmo pode acontecer com o café. Podemos estabelecer, com Ritmo, Cuidado Amoroso e Ordem Cerimonial, os momentos de preparar e servir o café, seguindo o processo normal de prepará-lo e com a melhor qualidade que for possível e em sintonia com o que somos. 

 Talvez estejamos desafiando a questão dramática que se impõem quando ficamos diante de ser ou não ser ou de tomar ou não tomar café. Como pessoas adultas, talvez todo esse processo esteja nos mostrando que precisamos ver a totalidade dos fatos relevantes para o despertar da consciência humana, numa cadeia de eventos desde a nossa fundação e como isso se interliga com o que acontece hoje e para servir ao mesmo propósito.  

Talvez a questão seja menos dramática e se resolva em algo como ser e não ser,  tomar e não tomar café, pois toma quem quer e não toma quem não quer, inspirados pela liberdade de se Ser o que se É, com e sem cafeína. No caso de Nazaré Uniluz como uma instituição, basta estabelecer os momentos em que institucionalmente vamos servir café e qual a receita e a logística do preparo disso. 

Se somos pessoas com cafeína em nosso sistema isso é parte integral da nossa instância de SER. Se somos pessoas sem cafeína no nosso sistema, isso também é parte integral da mesmíssima instância.

Assim, podemos como um grupo funcional, pelo menos nesse quesito, encontrar a solução para essa constelação logística, de modo respeitoso e reverente, e ver sempre o TODO da questão, finalmente.

Abraços fraternos e com imensa gratidão.

por Sônia Café – Escritora, Co Fundadora e Colaboradora de Nazaré Uniluz.

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